A “Lei do Distrato” (Lei nº 13.786/2018) trouxe regras específicas para a resolução de contratos de compra e venda de imóveis, buscando maior segurança jurídica no mercado. No entanto, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) recentemente se debruçou sobre um caso crucial, o REsp nº 2.106.548 – SP, para esclarecer como essas novas disposições legais se harmonizam (ou se conflitam) com o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
O julgado, relatado pela Ministra Nancy Andrighi, firmou entendimento fundamental para proteger o consumidor na desistência de contratos de lotes, mesmo aqueles firmados após a vigência da Lei do Distrato.
O Caso em Análise: Lotes em Loteamento Urbano
O recurso especial foi interposto oriundo de uma ação de resolução de contratos de promessa de compra e venda de lotes não edificados. Os contratos foram celebrados em 2020, já sob a égide da Lei nº 13.786/2018.
O propósito recursal central era duplo: (I) definir se o CDC prevalece sobre a Lei nº 13.786/2018; e (II) estabelecer os critérios de restituição e retenção dos valores pagos, em face das alterações do art. 32-A da Lei nº 6.766/1979.
O Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ/SP) havia determinado que a retenção deveria seguir o art. 32-A da Lei nº 6.766/1979, permitindo descontos que poderiam levar à retenção da integralidade dos valores pagos (embora ressalvando que não poderia gerar saldo devedor para o comprador).
1. A Supremacia do Código de Defesa do Consumidor
Um dos pontos mais relevantes do julgado é a definição do conflito aparente de normas. A Lei nº 13.786/2018 regulamenta todos os contratos de compra e venda no âmbito de incorporação imobiliária ou parcelamento do solo urbano. Contudo, o STJ reafirmou que, havendo um conflito, o CDC prevalece.
Isso ocorre porque o CDC é considerado a norma mais especial, aplicando-se apenas quando há uma relação de consumo, além de conter normas de caráter principiológico, como a proteção contra cláusulas abusivas.
A Corte destacou que a Lei nº 13.786/2018 não revogou nem alterou artigos do CDC. Permitir a perda substancial dos valores pagos seria abusivo e contrariaria o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa.
2. Limite de Retenção: O Teto de 25% dos Valores Pagos
O art. 32-A da Lei nº 6.766/1979 autoriza diversos descontos em caso de resolução por culpa do adquirente. No entanto, o STJ pacificou o entendimento de que a retenção pelo vendedor, em caso de culpa do consumidor, não pode ultrapassar o percentual de 25% dos valores pagos.
Este percentual de 25% possui natureza indenizatória e cominatória, abrangendo, de uma só vez, todos os valores que devem ser ressarcidos ao vendedor pela extinção do contrato.
Embora o Art. 32-A preveja diversos descontos (como cláusula penal limitada a 10% do valor atualizado do contrato, encargos moratórios, comissão de corretagem, tributos e taxas), o STJ determinou que a soma de todos esses descontos (previstos nos incisos II, III, IV e V do art. 32-A) deve respeitar o limite máximo de retenção de 25% dos valores pagos.
Isto visa evitar que a aplicação literal do Art. 32-A, que utiliza como base de cálculo o “valor atualizado do contrato”, resulte na perda substancial ou total dos valores efetivamente desembolsados pelo consumidor, prática vedada pelo art. 53 do CDC.
3. Taxa de Fruição: Indevida em Lote Não Edificado
A taxa de fruição, correspondente ao aluguel pelo uso do bem (prevista no art. 32-A, I, em até 0,75% sobre o valor atualizado do contrato), é uma exceção ao limite de retenção de 25%, devendo ser cobrada em separado.
Entretanto, o STJ manteve o entendimento consolidado: é indevida a taxa de fruição na hipótese de resolução de contrato de compra e venda de lote não edificado.
O fundamento para a cobrança da taxa de fruição é a vedação ao enriquecimento sem causa. No caso de um terreno sem construção, não há enriquecimento do comprador nem empobrecimento do vendedor, pois o imóvel não gerou proveito para moradia ou uso, estando ausentes os requisitos para o surgimento dessa obrigação.
No caso concreto (REsp 2.106.548/SP), a taxa de fruição não foi considerada devida, pois se tratava de lote não edificado.
4. Restituição Imediata: Reafirmação da Súmula 543/STJ
A Lei nº 13.786/2018 incluiu no § 1º do art. 32-A da Lei nº 6.766/1979 a previsão de que o pagamento da restituição ocorreria de forma parcelada (em até 12 vezes) e somente após um prazo de carência.
O STJ decidiu que essa forma de restituição parcelada é uma prática abusiva e contrária aos arts. 39 e 51, II, IV e IX, do CDC.
Em consonância com o Tema 577/STJ e a Súmula 543/STJ, a Corte firmou que, nas relações de consumo, deve ocorrer a imediata restituição dos valores pagos. O retorno ao status quo ante exige que, se o vendedor retoma o imóvel imediatamente, deve restituir os valores pagos de forma imediata ao comprador.
Conclusão do Julgamento
O STJ, ao julgar o Recurso Especial nº 2.106.548/SP (2023/0393051-0), deu provimento parcial ao recurso do consumidor, decretando a resolução dos contratos e condenando a vendedora a restituir ao recorrente 75% dos valores pagos.
Este julgado é um marco, pois, ao priorizar o Código de Defesa do Consumidor sobre as regras da Lei do Distrato (Lei nº 13.786/2018) em relações de consumo, garante que os consumidores que buscam a resolução contratual:
- Não sofram retenções que ultrapassem 25% dos valores pagos.
- Não sejam cobrados pela taxa de fruição em casos de lotes não edificados.
- Recebam os valores devidos de forma imediata.
A decisão reforça o papel do CDC como norma de ordem pública e de interesse social, impedindo o enriquecimento sem causa do fornecedor em detrimento da vulnerabilidade do consumidor.